sábado, 19 de junho de 2010

A Copa da China, por Flávio Tavares*

Naquele distante e próximo ano de 1949, no colégio marista em Lajeado, o Irmão Canísio nos pediu “uma redação” de 40 linhas sobre o ludopédio. Ele era um purista do idioma e explicou: “ludus” é jogo em latim; “pedus” é pé. Jogávamos bola duas vezes por semana, mas só naquele dia soubemos que, em verdade, aquilo se chamava ludopédio e não foot-ball, como se escrevia na grafia original dos ingleses.


Mesmo sob agasalho do melhor vernáculo, o ludopédio não sobreviveu na escrita nem na oralidade. O futebol o suplantou de goleada. Houve, porém uma exceção. Em plena ditadura, a 14 de dezembro de 1968, no dia seguinte ao totalitário Ato Institucional nº 5, um grande jornal carioca ressuscitou o termo na primeira página, em ironia. “Ludopédio” surgiu de chofre para mostrar aos leitores que havia censura e que, a partir dali, a imprensa estava ameaçada de tornar-se ridícula.

O futebol (ou o desporto) é contagiante forma de descobrir o mundo. Séculos atrás, para saber que existia outra gente além do Mediterrâneo, as caravelas de Vasco da Gama, Colombo e Pedro Álvares Cabral enfrentaram tempestades durante meses por “mares nunca dantes navegados”. Agora, basta “a Copa”, dita assim, como algo autônomo, inteligível em si.

Na euforia da Copa atual, em que o descobrimento maior é Nelson Mandela (não só seu país), há um campeão antecipado, proclamado mundo afora ao som das vuvuzelas.

A China é a grande campeã, ainda que seu futebol não esteja na África do Sul. Tudo ou quase tudo referente à Copa é chinês. As fitas e bandeiras verde-amarelas nas praças, residências e automóveis, ou os gorros e camisas que vestimos, vieram da China, tal qual as dos “hermanos” argentinos ou dos demais participantes, incluídos os anfitriões. São “made in China” os uniformes das seleções, em maioria.

Diz-se que o som instigante e irritante das vuvuzelas altera o ânimo e o ritmo dos jogadores, mais do que a nova bola inventada pela Fifa. As vuvuzelas africanas que irrompem nos estádios, porém, são feitas na China, num plástico que torna terrivelmente trepidante o som grave ou agudo, diferente das originais dos artesãos tribais.

A produção em massa leva à profusão de vuvuzelas e bandeiras misturando berro e cor.

O futebol funciona como anzol e único sol nestes dias frios e úmidos em que o calor surge da ansiedade pelos resultados. Em termos psicossociais, o Brasil está paralisado à espera da Copa. Exageramos na necessidade de acreditar em expectativas e deuses que se desfazem de um dia a outro como gelo ao sol, basta que Dunga não os leve à Seleção.

Desde menino, admiro no futebol a beleza da dança que sequer o maravilhoso “ballet” de Galina Uliánova conseguiu superar. Indago-me, porém, se não é estranho o culto fanático e exacerbado a algo belo pela destreza e em que competir exige perder ou ganhar. E se déssemos às ciências, ou às letras, a importância que damos ao futebol?

Escrevo agora de São Paulo, com a cidade entristecida de dor pela decisão da Fifa de excluir o estádio do Morumbi de sede da abertura da Copa de 2016. A maior cidade da América do Sul merece essa primazia, mas o governador paulista Alberto Goldman e o prefeito paulistano reafirmam que “não é justo aplicar dinheiro público em um estádio”. Corretíssimo!

Afinal, o lema de “pão e circo” da Roma Antiga passou à História como desprezível. Ou não?

*JORNALISTA E ESCRITOR

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